Pesquisas recentes revelam como a interação entre animais domésticos, aves selvagens e humanos está facilitando a disseminação de patógenos resistentes a antibióticos.
Aves selvagens vivendo em áreas urbanas podem desempenhar um papel na disseminação dessas bactérias | Foto: ICMBio
Duas linhas de pesquisa realizadas em Portugal e no Reino Unido revelaram que “superbactérias” podem ser transmitidas de animais para humanos. Enquanto um estudo focou em animais domésticos, como cães e gatos, o outro concentrou-se em aves selvagens que habitam áreas urbanas. Esses estudos destacam como a resistência antimicrobiana (RAM) está se espalhando através de diferentes tipos de animais e ambientes.
A resistência antimicrobiana é a capacidade que microrganismos, como bactérias, vírus, fungos e parasitas, desenvolvem para resistir aos medicamentos destinados a combatê-los ou inibir seu crescimento. Quando um microrganismo se torna resistente, tratamentos padrão, como antibióticos, antifúngicos, antivirais e antiparasitários, tornam-se ineficazes. Isso dificulta o tratamento de infecções, aumentando o risco de complicações graves e até morte. A resistência pode ocorrer por mutações genéticas ou pela troca de material genético entre bactérias, um processo que pode ser acelerado por práticas inadequadas, como o uso excessivo ou incorreto de antibióticos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a resistência a antibióticos uma das maiores ameaças à saúde global da atualidade, pois limita as opções de tratamento para infecções comuns e pode levar ao surgimento de doenças mais graves e difíceis de tratar. A RAM não se restringe mais apenas a ambientes hospitalares, estende-se atualmente a comunidades e áreas urbanas densamente povoadas, através de animais infectados.
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O Congresso Mundial da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID) de 2024, realizado em Barcelona, também destacou o problema da resistência antimicrobiana, apontando questões como o uso inadequado de antibióticos, a falta de novos medicamentos eficazes e a disseminação de superbactérias por animais domésticos.
Estudos têm evidenciado a presença de RAM em diferentes cenários. Em abril, uma pesquisa encontrou evidências de transmissão de bactérias multirresistentes entre gatos e cães doentes e os seus donos saudáveis. Apresentando uma nova perspectiva de que animais de estimação possam atuar como reservatórios e contribuir para a disseminação de resistência a medicamentos vitais.
“Compreender e abordar a transmissão da bactéria RAM de animais de estimação para humanos é essencial para combater eficazmente a resistência antimicrobiana nas populações humana e animal”, garante Juliana Menezes, do Laboratório de Resistência a Antibióticos do Centro de Interdisciplinaridade e Investigação em Saúde Animal, de Medicina Veterinária, da Universidade de Lisboa
O estudo envolveu cinco gatos, 38 cães e 78 pessoas em 43 casas em Portugal, além de 22 cães e 56 indivíduos em 22 residências no Reino Unido. Todos os animais de estimação que participaram do estudo tinham algum tipo de infecção, seja de pele, tecidos moles ou infecções do sistema urinário. Foram testadas amostras de fezes e urina, e esfregaços de pele de cães e gatos e seus proprietários para Enterobactérias (uma grande família de bactérias que inclui E. coli e Klebsiella pneumoniae) resistente a antibióticos comuns.
“Pesquisas recentes indicam que a transmissão de bactérias de resistência antimicrobiana (RAM) entre humanos e animais, incluindo animais de estimação, é crucial na manutenção dos níveis de resistência, desafiando a crença tradicional de que os humanos são os principais portadores de bactérias RAM na comunidade”, diz Menezes
Estudos com aves selvagens
A urbanização, ao invadir habitats selvagens, aumenta o risco de desenvolvimento de novas doenças e facilita sua propagação. Um estudo mais recente, publicado em agosto no periódico Current Biology , foi realizado com aves selvagens que convivem em áreas urbanas, como corvos, patos e tortos, mostrou que essas espécies continham uma gama maior de cepas bacterianas e até três vezes mais genes de RAM do que aves que vivem em ambientes isolados, como florestas e montanhas.
Este estudo analisou 700 amostras de bactérias coletadas do intestino de 30 espécies de aves selvagens em oito países, incluindo o Reino Unido, e demonstrou que aves selvagens em ambientes urbanos são portadoras de bactérias resistentes a antibióticos comumente usados em humanos. A pesquisa focou na bactéria Campylobacter jejuni, conhecida por causar diarreia, e identificou sinais genéticos de RAM em todas as espécies.
"Nosso estudo é o primeiro a demonstrar que as populações de aves selvagens nas cidades são reservatórios de bactérias resistentes a muitos antibióticos humanos importantes", declarou o professor Samuel Sheppard, líder em microbiologia digital e bioinformática do Instituto Ineos do Departamento de Biologia da Universidade de Oxford.
Aves selvagens vivendo em áreas urbanas podem se contaminar em rios com águas residuais, e podem desempenhar um papel na disseminação dessas bactérias. Essas aves podem infectar outras espécies de pássaros migratórios que podem carregar microrganismos resistentes a antibióticos em seus corpos ou fezes, possibilitando a transferência de RAM ao longo de grandes distâncias.
Esses microrganismos podem ser transmitidos para animais criados para consumo, como frangos, bovinos e suínos, quando as aves entram em contato com ambientes agrícolas ou urbanos e até mesmo para animais de estimação, como cães e gatos.